Quando estava lá pela metade do filme Um Sonho Possível, dirigido por John Lee Hancock eu estava aguardando que alguma coisa de errado haveria de acontecer e desmontar toda aquela montanha de clichês em que esta produção estava soterrada. Não era possível tudo estar dando tão certo na vida de Michael Oher, o Big Mike (Quinton Aaron). Alguma coisa tinha que acontecer para desestabilizar todo este conto de fadas. Quando houve o acidente de carro em que ele quase mata o caçula da ricaça pensei: Ai está a desgraça que vai dar uma virada na história e mostrar-nos se a tal Anne Tuohy é mesmo uma boa samaritana ou estava só fazendo tipo “ricaça fútil que vira boa samaritana para poder dormir com a consciência tranquila nos seus lençóis de seda ou para impressionar as amigas igualmente ricas e fúteis da sua pseudo bondade”. Pois não é que tudo ficou na mesma e a ricaça ficou mais bondosa do que já era? Santo Deus! Não li o livro que a produção do longa se baseou para criar o roteiro deste conto de fadas do século vinte e um. Mas com certeza não deve ter sido este mar de rosas, não.
Em linhas gerais o filme conta-nos a seguinte história: Leigh Anne Tuohy (Sandra Bullock) é uma ricaça branca de bons princípios cristãos e humanitários, mãe de uma patricinha e de um guri pentelho, casada igualmente com um cara que não fede nem cheira que resolvem acolher na sua mansão um negrão pobre que fora abandonado pela família e que vivia sozinho no mundo. Todos os membros da família não vêem nesta atitude nada de estranho e a convivência é pacífica, bondosa, ordeira e na mais santa paz celestial. O paraíso terrestre, enfim. A Patricinha (com suas colegas de escola igualmente patricinhas), aceita tal convivência numa boa. Esta tem lugar garantido no céu. O caçula, além de serelepe e pentelho, é igualmente um anjo da guarda e recebe o “irmão” de braços abertos (desde claro possa chamar mais a atenção para si mesmo). O Marido? Este não faz nada mais que bancar tudo de bom grado. Afinal a família é cristã, humanitária e a mulher é quem manda e ponto final. Quanto ao Big Mike ele aproveita para tirar vantagem e viver como bom filho adotivo. É bom que se diga que o Michael Oher é um cara negro que passou a infância fugindo de lares adotivos uma vez que foi tirado de sua mãe viciada e que relegava a educação e mesmo a subsistência de uma penca de filhos. Para se isolar de tudo e todos vive no seu mutismo e aparente indiferença a tudo que acontece a sua volta. Mas ele encontra pela frente esta bondosa família e seu futuro está garantido. Claro que o choro é garantido e igualmente aquela sensação de que bom que exista no mundo gente de bom coração para ajudar os necessitados. Então você segue para o seu quarto para dormir o sono dos justos.
Tudo é tão perfeito neste filme que mais parece um “documentário” de como se tornar uma boa pessoa ou aqueles filmes institucionais de alguma entidade que deseja incutir na audiência a consciência social e a prática da bondade ao próximo. Quando parece que algum drama real vá surgir na tela, o diretor volta sua câmera para a emoção superficial e inverossímil. Ainda bem que ele colocou um pouco de riso neste lençol de lágrimas que é o jovem S.J. (Jae Head) que dá um pouco de refresco quando a coisa começa a ficar insuportável. Sandra Bullock ganhou o Oscar por sua atuação como Leigh Anne Tuohy, mas confesso que não vi nada de mais e achei até bem forçado. Quinton Aaron como Big Mike saiu-se muito bem. Mas o grande barato deste filme foi mesmo Jae Haed com o pentelho S.J. E pensar que tudo isso foi baseado em fatos reais. Bem, pelo menos não choramos à toa e existem realmente pessoas de bem neste mundo. Mas que não deve ter sido assim tão fácil. Com certeza não foi.
Questionamentos que o filme, de certa forma, deixou de lado. Ficou tão “perfeito” esta união que deixou qualquer dúvida de lado. E, infelizmente, nos dias atuais esta disposição humanitária incondicional não existe. De qualquer forma, são temas a serem discutidos e pensados realmente.
Por que é tão difícil acreditarmos que aquela família teve a grandeza de espírito de aceitar aquele jovem negro de maneira tão agradável? Será que não acreditamos nessa suposta “facilidade”, pois vivemos em um mundo em que devemos desconfiar de tudo e de todos? Será que não acreditamos nisso, por que no momento em que o filho mais novo sofre o acidente seríamos os primeiros a nos desfazer do membro adotivo da família? Será que não acreditamos nisso, pois sentiríamos que a aproximação dele com a filha iria colocar a integridade dela em risco? Será que não acreditamos no mundo perfeito do filme, pois alguma coisa ele roubaria daquela casa, alguma tragédia ele provocaria naquele lar? Será que realmente conhecemos os valores cristãos? Será que realmente conhecemos o que é a bondade, o que é a humanidade incodicional?