Não Me Abandone Jamais, dirigido por Mark Romanek baseado na obra de Kazuo Ishiguro é uma daquelas produções que ficam martelando na cabeça do espectador após a projeção. Devo confessar que este filme me incomodou bastante. No bom sentido, claro já que gosto muito de roteiros que coloquem mais dúvidas do que certezas na minha cabeça. Foi o que fez o roteirista Alex Garland com sua arte. Se fosse obrigado a escrever, em uma única frase, a história deste filme, me atreveria a declarar o seguinte: Viver só vale à pena se estivermos com o coração transbordando de amor. Tudo o mais é irrelevante.
Calma, não precisa torcer o nariz com o clichê do parágrafo acima. Até porque, este filme não possui os clichês que se esperaria de uma produção que tem o amor como tema. São poucos na verdade nos 103 minutos que transcorrem na tela. Aliás, Não Me Abandone Jamais nem é classificado como “romântico” pela crítica especializada. “é um filme de ficção inglês“ foi o que li. Vamos ao roteiro para não ficar divagando e dando voltas.
Só um aviso: Caso não tenha assistido ao filme, não leia os comentários a partir daqui porque sou campeão em spoiler.
Katy, Tommy e Ruth cresceram juntos num internato inglês aparentemente muito convencional com regras rígidas de comportamento, disciplina e excelente educação (pedagógica e física) num ambiente saudável rodeados de exuberante natureza e sossego. Como todo bom internato inglês que se preze.
A vida dos adolescentes em Hailsham, afastados de qualquer contato com o mundo exterior, segue uma rotina de estudos, excelente alimentação, exercícios físicos e… Bem, ai é que a coisa se complica. Tem alguma coisa estranha no comportamento passivo e ingênuo das crianças e no relacionamento distante e asséptico entre professores e internos.
Esta normalidade toda é quebrada com a chegada da nova tutora da 4ª série, Miss Lucy. Na convivência com os alunos, Miss Lucy percebe que as crianças ignoram completamente o que se passa fora dos muros da instituição e, pior que isso, elas acreditam em um futuro promissor. No discurso que faz em sala de aula a tutora revela a dura realidade às crianças:
“Nenhum de vocês irá para os Estados Unidos, nenhum de vocês será ator de cinema. […] Suas vidas já foram mapeadas. Vocês se tornarão adultos e, antes de ficarem velhos, antes mesmo de entrarem na meia-idade, começarão a doar órgãos vitais. Foi para isso que todos vocês foram criados. Vocês não são como os atores que vêem nos vídeos, não são nem mesmo como eu. Vocês foram trazidos a este mundo com um fim, e o futuro de vocês, de todos vocês, já está decidido”
Depois desta revelação, eu pensei que os internos cairiam em depressão ou se rebelariam contra esta desumanidade e não aceitariam, passivamente, esta existência de “ratos de laboratório”. Mas não é o que acontece. E isso é o mais perturbador da narrativa. Como não reagir indignado com uma existência desta?
A partir desta revelação (para os jovens e para o espectador) o filme toma outro rumo no que se poderia classificar como segundo ato. A partir do discurso revelador de Miss Lucy, comecei a ficar incomodado com a passividade das crianças em aceitar uma vida sem futuro e uma existência de simples “mercadorias” em uma loja de horrores. Além é claro, de pipocar na minha cabeça inúmeros questionamentos que a trama não revela: Como a sociedade chegou a este ponto de menosprezar a vida das pessoas? Como se dá este processo doação/recepção dos órgãos? Que fim levou a ética médica, a questão moral, religiosa e filosófica que permitiram que outras pessoas viessem a explorar outros seres humanos como mercadoria? E principalmente, como eles (as crianças e depois adultos), permitiram receber este tratamento desumano? Deveriam reagir!
Ao término do filme e ainda sob o impacto do que tinha assistido uma única certeza: Tinha mais dúvidas do que respostas na minha inquieta cabeça. Precisaria de mais tempo para digerir tudo isso e fui tentar conciliar o sono. Que não vinha… Cenas do filme, diálogos comoventes e aquelas cores sombrias embalados por uma trilha sonora inquietante se acumulavam no meu cérebro e perturbavam minha paz noturna. Tive pesadelos. Sim, eu sou uma pessoa impressionável e suscetível a sentimentos (bons e/ou ruins). Que fazer se sou um ser sentimental! Mas é preciso racionalizar para tentar entender a trama (será possível?) e o que exatamente foi proposto na obra de Ishiguro. Será que já não estamos caminhando nesta direção? Quando uma mãe, no desespero de salvar um filho que precisa de doação, resolve engravidar novamente para conseguir órgãos compatíveis não estaria desta forma praticando ato parecido? A ciência já deu mostras de sua capacidade de clonar seres vivos (lembram da ovelha Doly?) e tantos experimentos com DNA, células tronco, etc… etc… Uns dizem que o homem quer ser Deus e também ser responsável pela vida e morte de seus semelhantes. Quando não simplesmente extinguir outros seres. Mas isso é outra história.
O interessante no roteiro é que a história, apesar de ser uma ficção científica, começa na década de 50 e, percebe-se que estes fatos (clonagem humana e seres criados somente como portadores de órgãos para doação) já estão firmemente aceitos pela sociedade e ninguém se escandaliza mais com esta barbárie. Uma distopia interessante porque se acredita (e se espera) que o futuro será melhor para todos. Bem, para as pessoas que recebem as doações pode ser, mas e os internos, quem se preocupa com eles? Crueldade maior é saber que os jovens eram estimulados em Hailsham a desenvolverem aptidões artísticas como pintura, literatura, poesia, artes plásticas para que tais trabalhos fossem expostos numa respeitável galeria. Na realidade, tais “obras” se destinavam para outros fins que o espectador (e os jovens), irão descobrir ao final do filme quando a guardiã da instituição, Miss Emily faz a seguinte revelação.
“Nós levávamos seus trabalhos porque achávamos que eles revelariam a alma de vocês. Ou, para esclarecer melhor a questão, fazíamos isso para provar que vocês tinham uma alma. […] Demonstramos para o mundo que, quando criados num ambiente humano e culto, os alunos podiam se tornar tão sensíveis e inteligentes quanto qualquer ser humano normal. Antes disso, todos os clones – ou alunos, como nós preferíamos chamá-los – existiam apenas para abastecer a ciência médica. Nos primeiros tempos, logo depois da guerra, isso era tudo que vocês representavam para a grande maioria. Objetos obscuros em tubos de ensaio”.
O que me levou a entender as razões do roteiro em ambientar a história no passado e não no futuro. Considerar outros seres humanos sem alma já vem de um passado não tão remoto assim. Os escravos eram considerados meros animais de força bruta destituídos de qualquer humanidade e sem alma. Hitler, e seus cúmplices, acreditavam que os judeus eram ratos e, como tal, eram tratados. Em ambos os casos (e muitos outros) a sociedade não reagiu para evitar estas barbáries. Como foi possível que nações inteiras aceitassem a exterminação de seis milhões de judeus? Como foi possível que pessoas cultas e ditas “civilizadas” explorassem, por décadas e décadas, a mão de obra escrava e considerassem estas pessoas sem alma? Enfim, esta é uma questão filosófica, moral e religiosa que já nos acompanha há séculos. E como se vê, não evoluímos quase nada nesta área de respeito ao próximo. Vide os povos da África que morrem à míngua, mulheres que sofrem toda sorte de crueldade e colocadas como seres de segunda classe em nome de religião e de uma cultura retrógrada. Vamos falar de amor? Afinal você deve estar se perguntando onde entra o romântico nesta história. Isso se você não desistiu da leitura deste texto e está correndo até agora deste dramalhão todo. Perceberam que temos um triângulo como personagens principais da história? Pois é. Como todo bom triângulo outro drama irá se desenrolar paralelamente à história dos clones. Assim, voltamos ao sentido da frase que citei no primeiro parágrafo: Viver só vale à pena se estivermos com o coração transbordando de amor. Acredito que Ruth (Keira Knightley), Tommy (Andrew Garfield) e Kathy (Carey Mulligan) suportaram esta existência porque, de uma forma inesperada, o amor os alcançou. Assim como ciúmes e a inveja. Porque um triângulo sem estes sentimentos também não seria trágico e sim um “ménage à trois” (risos). A impossibilidade de Tommy em por fim ao relacionamento com Ruth (relacionamento só sexual, diga-se) e declarar-se verdadeiramente para Kathy leva-os a viverem na esperança de que um dia o amor de ambos possa ter chance de concretizar-se. Nesta esperança de viver um grande amor, vão sofrendo a humilhação de serem meros carregadores de órgãos. Quando finalmente Tommy se declara e passam a viver a amplitude deste amor, o tempo, inexorável, já passou para ambos e as doações vão minando a possibilidade de vida futura. Ao fim, cabe a Ruth, a última sobrevivente do trio, expor as razões de ter conseguido enfrentar sua sina:
“Venho aqui e imagino que este é o lugar onde descansa tudo o que perdi desde a minha infância. Digo a mim mesma que se fosse verdade e esperasse o suficiente uma pequena figura apareceria no horizonte através do campo e gradualmente iria crescendo, até que eu visse que era o Tommy. Ele acenaria e talvez me chamasse. Não deixo que a fantasia vá além disso. Não posso permitir.
Lembro a mim mesma que tive sorte de ter passado um tempo com ele. O que não sei ao certo é se nossas vidas foram tão diferentes das vidas das pessoas que salvamos. Somos todos mortais. Talvez nenhum de nós realmente entenda o que passamos ou sinta que tivemos tempo o bastante.”
Vale salientar a comovente trilha sonora, a direção de arte que utilizou cores neutras para destacar bem o distanciamento dos relacionamentos humanos. Em cena, os personagens principais sem sobrenomes, sem identidades e pouquíssimas pessoas a cruzarem seus caminhos. Uma solidão sufocante, quase como um personagem na história. Devo confessar que não sou fã de Keira Knightley, mas sua atuação não compromete o filme como um todo. As interpretações de Andrew Garfield e Carey Mulligan são contidas e comoventes. Vale a pena assistir. Mas esteja preparado psicologicamente e tenha lenços para enxugar rios de lágrimas.